quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O “Destino das Mulheres e de sua Carne”: Regulação de Gênero e Iscrição da Nativa em Moçambique ( Texto completo do autor)

Texto do Prof. Dr. Osmundo Pinho (UFRB) originalmente apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia.
Em São Paulo, julho de 2012.



O “Destino das Mulheres e de sua Carne”: Regulação de
Gênero e Inscrição da Nativa em Moçambique1
Osmundo Pinho


Introdução


Nesta comunicação discutiremos determinados registros, fragmentos de uma
documentação, encontrados no Fundo “Direção de Serviços de Negócios Indígenas”,
do Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) e que se referem ao conturbado processo
de elaboração do Código Penal e Civil dos Indígenas de Moçambique, tarefa
encomendada ao jurista/etnólogo José Gonçalves Cota, pelo Governador Geral da
Colônia de Moçambique José Bettencourt (Serra, 2010). Os documentos em questão
nos permitiriam flagrar com vivacidade o processo de efetiva inscrição d@ nativ@,
como o descreve G. Spivak (2010), sob o marco da “legibilidade”, como discute de
outra parte Veena Das (2004).
Dessa perspectiva, podemos discutir o trânsito político de incorporação do destino da
mulher, e de seu corpo, que ao tornarem-se matéria de consideração política por parte
do Estado, nos permitiriam vislumbrar a articulação de uma economia política do
gênero no ambiente colonial. Tal transição/tradução incompleta opera como elemento
da “postcolony”, como a descreve Achille Mbembe (2001), que sobrevive à
emancipação política de Moçambique e prossegue, requalificada, no discurso
frelimista, como pretendo sumariamente indicar.
No que segue apresentaremos assim a instituição da missão liderada por Cota, os
debates sobre o destino das mulheres, e a natureza dos usos e costumes nativos, que
envolverem o governo colonial e a igreja católica na colônia; e a produção de inscrição




1 A pesquisa que embasou esta comunicação tem sido apoiada pelo CNPq, por meio dos editais MCT/CNPq/SPM-PR/MDA Nº
57/2008 e MCT/CNPq Nº 03/2009. Agradecemos a Brazão Catopola, pelo apoio no campo em Maputo (2011), e a Sandra Chirinza,
Abel Pemba e Alberto Calbe, pela preciosa ajuda no Arquivo Histórico de Moçambique.
2 Professor Adjunto no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, campus de
Cachoeira e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma Universidade. Bolsista do CNPq.
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e legibilidade para a mulher nativa, marco político-epistemológico que configurou as
contradições do discurso da FRELIMO sobre o gênero no período posterior.
A forma particular, histórica, como aparece a regulação das posições de gênero em
Moçambique, não dissimula, é óbvio, o caráter social das disposições simbólicas, que
são necessárias para produzir a sujeição/subjetificação de um sujeito dispersivo e
heteróclito que chamaríamos a mulher. Desse ponto de vista, a engenharia social e o
poder das disposições simbólicas, e da violência, foram mobilizados para
reconformar/reconhecer a mulher como um sujeito (assujeitado) no interior das
estruturas em transformação do
Estado em construção. O que parece
algo perturbador é a continuidade
dessa produção subjetificante, que
observamos entre o período colonial
e o período frelimista, como aponta
Signe Arnfred (2011) dentre outros.








Foto do autor, Maputo, 2011.

No Hall de entrada do AHM, me deparei por diversas vezes com duas enormes
fotografias. A de Samora Machel (em uniforme militar), segundo presidente da
FRELIMO que em 1970 substitui Eduardo Mondlane, assassinado por meio de uma
carta bomba. E a de Joaquim Chissano (de terno e gravata), que em 1986 substitui
Samora Machel na direção da FRELIMO, após este morrer em acidente aéreo3. Ícones
da memória revolucionária vigiavam os dois, gigantes e masculinos minha curiosidade,
pairando imaginários, como guardiões da História reconstruída em Moçambique. No
interior dessa história de luta e libertação, coroada com os louros do heroísmo e da
luta por emancipação universal, parecem respirar baixinho, outras histórias e
perspectivas que expõem as contradições do processo revolucionário. A mulher e sua
carne figuram no avesso dessa história de emancipação e luta e com esse avesso
pretendemos agora conversar.

3 Chissano foi eleito presidente da Republica em 1994, cargo que ocupou até 2005.
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A Missão de José Cota


“Por meu despacho de 28 de julho de 1941 (Boletim Oficial no. 32, 2ª. Série) foi
incumbido o Dr. José Gonçalves Cota de proceder Estudo Etnográfico das populações
nativas da colônia a fim de elaborar os Códigos Penal e Civil dos indígenas em
conformidade com o disposto no artigo 24º. do decreto no. 16:473”4.
Com essas palavras, o Governador-Geral de Moçambique, o General José Tristão de
Bettencourt, cria a Missão Etognósica de Moçambique em 31 de Julho de 1941, que
deveria proceder à elaboração dos Códigos Penal e Civil dos Indígenas de
Moçambique, a partir de estudo etnográfico dos povos da coloniais. O trabalho foi
entregue à chefia de José Gonçalves Cota, jurista e advogado da colônia (Serra, 2010).
O debate sobre Pluralismo Jurídico tem, evidentemente, grande importância em
Moçambique, uma vez que ao longo do século XX diferentes sistemas
jurídicos/costumeiros de regulação das relações sociais, e de arbitragem de conflitos,
mais ou mesmos regulados pelo Estado, permaneceram como disjuntores da vida
social da colônia/nação. Tal como se descreve, a dualidade do direito nas colônias
africanas das potências europeias, na primeira metade do século XX, foi definida pela
dualidade do poder, encarnada no despotismo descentralizado, quer seja sob a
modalidade da “indirect rule”, ou do assimilacionismo“relativista” (Mamdani, 1996).
A racialização africana caminhou pari passu às estratégias de dominação política e à
elaboração de um arcabouço jurídico conceitual, capaz de conferir inteligibilidade aos
processos administrativos, associando a diferença cultural à diferença racial como
instrumento político de dominação. Nesse sentido, a culturalização (culturalização) da
vida social, foi elemento importante da razão etnológica (Amselle, 1998), que em
associação ao poder colonial, produziu o indígena ou nativo(Macagno, 2001)5. É sob o
registro de tais modulações, que a questão da mulher nativa, do casamento e do


4 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
5 A “razão etnológica” operou pela invenção de grupos étnicos como um resultado articulado do esforço conjunto da
administração colonial e de etnólogos, definindo as sociedades humanas como espécies diferentes, individualizadas, na tradição
culturalista de Boas, ou por meio da ênfase comparativa, que associa o etnólogo comparatista ao colecionador de borboletas. De
tal sorte, diz Amselle, que é a noção de comparativismo que funda a ideia de culturas africanas, substituindo unidades politicas
organizadas em um continuum definido politicamente, por classificações culturais-naturais e tipologias (Amselle, 1998).
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parentesco se apresenta, saltando das páginas da literatura antropológica para os
códigos penais e civis.
No contexto histórico-político de Moçambique observamos um conflito de legalidade e
sobreposição disciplinar. Que Boaventura de Souza Santos (2003) compreendeu
justamente como determinada modalidade de pluralismo jurídico, e Mahmood
Mamdani (1996) considerou como a herança dissimulada da dualidade do poder que,
baseada na “razão etnológica”, construiu um arcabouço heteróclito e híbrido para a
regulação das práticas sociais e para a administração do poder. Como na opinião do
sociólogo moçambicano Carlos Serra:
“A codificação do direito costumeiro configurou-se, assim, como um mecanismo
intencional de introdução gradual de transformações nos sistemas jurídicos das
populações nativas, de modo a prosseguir a consolidação das relações de poder e
dominação que caracterizam os estados coloniais e o controlo efectivo do território e
das suas gentes por parte dos agentes da administração colonial” (Serra, 2010: 27).
Pluralismos jurídicos foram associados por Albie Sachs (1981) a regimes de
discriminação que distinguiam, por meio de divisões culturais, nativos e europeus. Em
vez disso ele sustenta para Moçambique a necessidade da mais absoluta igualdade
jurídica, o inverso do que ocorria, por exemplo, na África do Sul, naquele momento no
auge da repressão as lutas contra o Apartheid, das quais o próprio jurista foi um
participante destacado6.
Nas páginas da Revista “Justiça Popular” observamos a pregação frelimista em torno
da importância de atribuir-se direitos legais/universais ao casamento para fins de
herança e de descendência. No período áureo do debate sobre pluralismo jurídico e
justiça popular testemunhamos a rejeição ao “estudo etnográfico”, identificado à
etnologia como a produção (essencialização) da cultura, fundamento dos pluralismos
por sobre a distinção política que no “tempo colonial (....) procurava isolar e
autonomizar os sistemas tradicionais como se existissem fora do processo histórico”
(Justiça Popular, no. 5, 1982).


6 Scheper-Hughes, 2007.
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Tendo em mente tais enquadramentos, estruturantes do contexto de
interação/transformação dos sistemas jurídicos como sistemas de
assujeitamento/regulação, consideraremos os documentos em análise.
O trabalho de Cota conclui-se em 1946, cinco anos depois de seu início - após uma
série de diatribes, dificuldades com intérpretes, disputas por combustível, fofocas e
reclamações - com a publicação do “Projeto Definitivo do Código Penal dos indígenas
da Colónia de Moçambique, acompanhado de um relatório e de um estudo sobre
direito criminal indígena” e do “Projeto definitivo do estatuto do Direito Privado dos
indígenas da Colónia de Moçambique, precedido de um estudo sumário do direito
gentílico”7. Os materiais etnográficos que serviram de suporte à elaboração dos dois
projetos, foram publicados em 1944 sob o título “Mitologia e Direito Consuetudinário
dos Indígenas de Moçambique”, acompanhado do muito significativo subtítulo “Estudo
de Etnologia mandado elaborar pelo Governo Geral da Colónia de Moçambique”.
O ano de 1941 consta como inaugurando nova fase na administração colonial em
Moçambique. No ano anterior, a Metrópole assistia a realização da Exposição do
Mundo Português, o que proporcionou a ornamentação ideológica necessária à
alteração da politica colonial. Veríamos assim reunidas condições práticas e
superestruturais — as exposições, os congressos, as disposições e regulamentações
legislativas (o Ato Colonial, a Carta Orgânica do Império Colonial Português) — para
um exercício efetivo de administração colonial (Thomaz, 2002; Zamparoni, 2007;
Cabaço, 2009).
O esforço decidido para a consolidação da administração – e do efetivo poder -
colonial, seria o estabelecimento de uma nova normatividade jurídica para o exercício
da função judicial colonial sobre os “indígenas” e, na verdade, a condição para a
produção/inscrição dos nativos no aparato político do Estado como atribuidor da
legibilidade aos sujeitos coloniais.
Estaria Gonçalves Cota, em 1946 ainda excessivamente preso a uma abordagem de
natureza evolucionista? Ainda que temperada com o particular


7 Segundo Serra, estes nunca foram promulgados pelo Governo Metropolitano. (2010).
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relativismo/assimilacionismo colonial? O anacronismo da abordagem seria assim uma
questão relevante, uma vez que estaríamos nos anos 40 já sob a égide do
funcionalismo, vitorioso nas disputas no campo da teoria antropológica (Kuper, 1988).
Ao citar Ancient Society (1877) de L. H Morgan, Cota parece dar testemunho de sua
própria superação. O fato de ser jurista e não antropólogo, entretanto, o associa mais
fortemente a genealogia evolucionista, e ao próprio Morgan, é claro, ele próprio
também advogado (Kuper, 1988).
Kuper nos lembra ainda que a ênfase principal encontrada no evolucionismo é aquela
ligada a aspectos jurídicos, relativos à constituição do Estado, da família, da herança e
da propriedade, elementos estruturantes da autopercepção e organização das
sociedades capitalistas modernas na Europa; “Nor it is this altogether surprising, since
the study of primitive society was not general regarded as branch of natural history.
Rather it was treated initially as a branch of legal studies” (Kuper, 1988:3). Os povos
considerados selvagens existentes à época, nos permitiriam reconstituir, na
perspectiva evolucionista, a história da família humana, que é uma só em sua “fonte,
experiência, progresso” (Morgan, 2005). Tal progresso seguiria uma linha unívoca,
transitando do “direito materno” para o “direito paterno”. Ideia canônica,
compartilhada pelo Arcebispo de Lourenço Marques, Joaquim Teodósio: “O indígena,
espontaneamente e em procura de estabilidade para o seu lar e de segurança para si e
sua prole, vai abandonando o regime matriarcal e preferindo o patriarcal”.8
A iniciativa encomendada a Cota, observaríamos, concordaria assim com um novo
esforço para conceder coerência normativa aos distintos regimes jurídicos coabitantes
na colônia, submetendo-as às prerrogativas do Estado Colonial Português.
“Nas colônias atender-se-a ao estado de evolução dos povos nativos, havendo
estatutos especiais dos indígenas que estabeleçam para estes sob influência do direito
público e provado português regimes jurídicos de contemporização com os seus usos e
costumes individuais, domésticos e sociais que não sejam incompatíveis com a moral,
com os ditames da humanidade ou com o livre exercício da soberania portuguesa,
embora procurando o seu lento aperfeiçoamento”.

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8 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
9 Idem.
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Na introdução a “Anthropology & The Colonial Encounter” (1973) Talal Asad não nos
deixa esquecer que o fato fundamental que permitiu o funcionalismo em África foi à
dominação colonial, e em termos factuais, o Tratado de Berlim em 1884/1885, o
evento geopolítico que desenhou as condições por meios das quais a representação da
diferença etnográfica pode ser realizada em África (Brunschwig, 1971). De modo tão
explicito, e brilhante, como na etnografia Nuer produzida por Evans-Pritchard, (1993).
Em seu ensaio no mesmo livro Asad (1973), insiste no compromisso do funcionalismo
britânico em produzir uma miragem de sistemas sociais relativamente homogêneos e
atemporais, por meio de sua inflexão teórica, imposição de uma temporalidade ahistórica
aos nativos, agora posta em movimento pela presença colonial, o que
causava em Evans-Pritchard “nuerose”: “Desafio o mais paciente dos etnólogos a abrir
caminho face a esse tipo de oposição. Agente fica maluco com ela. De fato, de pois de
algumas semanas de manter relacionamento unicamente com os Nuer, a gente exibe,
se for permitido o trocadilho, os sintomas mais evidentes de ‘nuerose’” (Evans-
Pritchard, 1993: 19)10.

O “Destino das Mulheres e de Sua Carne”
A imperiosa necessidade de produção de um arcabouço legislativo, disciplinador do
estatuto dos sujeitos coloniais, explica a missão de Cota. A redução da diversidade de
usos e costumes a um quadro legível seria uma tarefa fundamental, definida desde o
ato colonial de 1930 e posteriormente reiterada. Ora, como aponta Thomaz, podemos
tomar a legislação com a uma representação por excelência, por meio da qual “uma
sociedade ou grupo, projeta uma imagem de si” (Thomaz, 2002:71).
As diferenças de usos e costumes dentre as várias populações não deveria obstar a
formulação de preceitos gerais. Mesmo quando observada a diferença entre o Sul
patrilinear o Norte matrilinear, as diferenças entre as duas regiões não ofereceriam um
óbice à imposição de uma legislação comum. Convém recordar a promulgação do
“Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique”,
ocorrida em 1954. Este documento foi precedido por diversos outros como o “Estatuto
Político, Civil e Criminal dois Indígenas” de 1929, o “Código do Trabalho dos Indígenas


10 O trecho refere-se à dificuldade Evans-Pritchard extrair informações dos nuer, que haviam sido recentemente pacificados pela
Royal Air Force.
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nas Colônias Portuguesas na África” de 1929 e outros, como está em Thomaz (2002). E,
fundamentalmente, o “Ato Colonial” de 1930, promulgado por meio do decreto n.º
18.570 de oito de Julho de 1930, de caráter concentrador. Todos estes códigos, e o
conjunto da legislação, assentavam sobre o princípio de uma desigualdade
fundamental entre cidadãos portugueses e indígenas, uma desigualdade que apesar de
calcada na diferença racial, poderia ser suplantada pela contraditória política
assimilacionista do Estado colonial português, que preconizava “diferença de estágio
civilizatório” entre os nativos. O referido “Estatuto Político, Civil e Criminal dos
Indígenas” publicado como o Decreto no. 16.473 de 1929 estabeleceu as bases legais
para o trabalho de Cota, e de seus interlocutores, na consecução de seu trabalho. Toda
essa legislação do período republicano é procedida por outras, discutidas com
propriedade em Zamparoni (2007). Como o próprio desenvolve a primeira
preocupação legislativa com os nativos foi a produção de uma força de trabalho, e a
submissão (civilização) do negro por meio do trabalho.
Dessa forma, em 1899 foi publicado o “Código do Trabalho Indígena” da autoria de
Antônio Enes11, com forte ênfase na legitimidade da coerção estatal para obrigar o
negro ao trabalho. A necessidade de produção de matéria prima a baixo custo, e de
uma mão de obra barata estariam, no argumento de Zamparoni, conectadas à
necessidade de produção de uma categoria particular, o indígena, submetido à
legislação diferencial. Antônio Enes, citado por Zamparoni, pristinamente explica qual
o objetivo principal da exigência do trabalho coercitivo: “Explorar em proveito nosso o
trabalho de uns milhões de braços, enriquecendo-nos a custa deles. De tal modo se fez
no Brasil” 12 (Zamparoni, 2007: 55) .
Ora, como efetivo dispositivo de uma biopolitica, a legislação colonial operou a
sujeição do nativo, submetendo-o para os fins do trabalho. Assim, o assujeitamento
produzido não poderia ser mais completo ou efetivo, sem a reprodução de padrões
morais, como justificativa para colonização.


11 Sobre Enes, ver Macagno, 2001.
12 Com o mesmo braço negro, acrescentaria.
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O casamento indígena realizado por meio do lobolo, preço da noiva, ou prestações
matrimoniais, pareceu profundamente escandaloso, e objeto de prolongada
controvérsia em Moçambique que sobreviveu à emancipação colonial13. A dimensão
meramente mercantil do casamento provoca repulsa, uma vez que o pai e os irmãos
da noiva estariam profundamente interessados em um bom casamento, realizado com
um lobolo valioso, que permitisse aos homens da família, eles próprios, realizarem
bons casamentos. Como diz Cota: “O pai, em regra sente pelo filho, o interesse de um
criador de rebanhos pelos animais mais novos. Valendo os filhos pelo que rendem no
trabalho e as filhas pelo que rendem no casamento, quando seja obrigatório o lobolo,
peti, chiva ou mahari”.14
O romance de Paulina Chiziane “Ventos do Apocalipse” (2010) faz eco trágico e poético
à percepção desses fenômenos. Na aldeia de Mananga, nos tempos de uma guerra
indefinida, 15o velho Sianga, antigo régulo desprestigiado pelos novos tempos, e pela
autoridade dos mais novos como o secretário da aldeia, pretende casar a filha,
Wusheni, com o ainda mais velho Muianga, justamente para poder ele próprio, lobolar
uma mulher mais jovem que a sua esposa atual, Minosse. Mas Wusheni, apaixonada
pelo pária romântico Dambuza, se nega a casar-se, e é por isso brutalmente
espancada. Antes de saber da recusa, o velho Sianga se dirige a assembleia de
parentes para anunciar o casamento.
“A minha Wuseheni esta madura, está bela. Está na altura de produzir frutos. Chegou a
hora da colheita, de receber minha recompensa e o preço de todas as canseiras que
suportamos pelo seu crescimento” (Chiziane, 2010: 82).
Cota detém-se meticulosamente também na descrição de ritos iniciação feminina, e
com grande escândalo observa a relação de poder entra as mulheres mais novas e
mais velhas, e o aspecto licencioso e devasso dos ritos16. No Capítulo III do Projeto do
Código Penal já assim prescreve a penalização pelo “estupro artificial” em seu artigo
84º, no qual se descrevem os ritos sexuais (insungukati) perpetrados por mulheres


13 CF. Granjo(2005).
14 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
15 Mas que seria a guerra civil com a RENAMO.
16 Descrito recentemente por Arnfred, para os ritos Makhuwa (2011).
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mais velhas, que valendo-se do fruto da massala (Strychnos spinosa) antecipam
ritualisticamente o defloramento da jovem:
“Ainda há as que se utilizam de um pau roliço, etc. a seguir a esta operação feita por
muitas velhas a muitas donzelas reunidas em série realiza-se às vezes alguma dança
(Zavala) a beira de uma lagoa, de um rio ou ribeiro, dança em que as velhas simulam o
coito com as raparigas e cantam as obscenidades apavorantes no propósito de
preparar o espírito das mocinhas para a futura moral do lar... Esta dança é muitas
vezes precedida de um banho na lagoa ou rio ou ribeiro, à noite de preferência a luz do
luar. Só as donzelas entram na água as velhas ficam próximo, em terra, voltadas para
as banhistas, a quem dirigem alusões impudicas e bárbaras ao destino das mulheres e
de sua carne” (116).
Não poderia, obviamente, o destino das mulheres, ou de sua carne, tal como apontaria
Foucault, passar ao largo de processos de individuação, como efeitos das táticas do
poder apoiadas na produção do corpo, e em sua submissão e repartição como objeto
politico. Investido pelas relações de poder, o corpo estaria “mergulhado num campo
político”, ocupado por uma tecnologia política, por meio do qual o Poder (colonial)
produz saber sobre o Outro (a mulher nativa) em meio a processos e lutas. Ora, a alma
é uma entidade histórica produzida em torno, na superfície e no interior dos corpos.
“O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de
uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva a existência,
que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma,
efeito e instrumento de uma anatomia política: a alma prisão do corpo” (Foucault,
2004: 29).
Assim é que, a perspectiva colonial, associada ao catolicismo em África, empenhou-se
na produção politica do corpo, e na sua submissão a uma alma, entidade abstrata
imposta como dispositivo político para a biopolítica imposta pelos europeus. A ela
contrapunham-se as técnicas corporais locais, que operavam em outro registro e
compromisso com as estruturas culturais de poder e gênero, como desenvolve Arnfred
para papel da sexualidade, do desejo e da licenciosidade em meio às mulheres
Makhuwa e seus ritos de iniciação e técnicas corporais (Arnfred, 2011). De modo
corajoso e inovador, a Arnfred aponta ainda como as mulheres “tradicionais” podiam
fazer uso da sedução, do desejo e dos poderes sexuais, para fazer política. Ao arrepio


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da pregação cristã, e da moral
revolucionária da FRELIMO, que
demonizam a sexualidade da mulher,
e viam, por exemplo, nas prostitutas,
especialistas da ars erótica, a
imagem incorporada da devassidão e
degradação moral do colonialismo.
Mulheres Makhuwa fotografadas por Weule, em 1906.
O etnólogo evolucionista alemão, Karl Weule, aluno de Ratzel, realizou em 1906
viagem etnográfica pela então África Oriental Alemã, no que hoje é a Tanzânia, e que
descreveu no ricamente ilustrado livro “Resultados Científicos da Minha Viagem de
Pesquisa Etnográficas no Sudeste da África Oriental”, publicado originalmente em
190817. Weule descreve a viagem entre as atuais Tanzânia e Moçambique, na qual ele
pôde registrar inúmeros traços das culturas Yao, Makonde e Makhuwa. Neste livro,
descreve, e fotografa, inúmeras técnicas corporais nativas, notadamente aquelas
ligadas à mulher e à produção de um corpo feminino erotizado. Como o alongamento
dos lábios vaginais, deformações do corpo e uso do “pelele”, e outros objetos nos
lábios e orelhas, além, é claro, das tatuagens. Descreve também ritos de iniciação,
“unyago” entre rapazes e moças, e a circuncisão, “lupalanda”, dos rapazes.
Descrevendo o “chipuitu” iniciação feminina entre os Yao, Weule diz:
“As crianças são levadas a alongar os lábios minora sistematicamente, puxando dia
após dias durante anos. Eu próprio vi e fotografei órgãos deformados desta maneira
que atingiram sete a oito centímetros de comprimento. Segundo informações, dadas
de bom grado por inúmeros indígenas masculinos, esse prolongamento pode atingir
dimensões tais que esses lábia bamboleiam a até chegar a meio caminho do joelho A
finalidade dessa deformação é apenas de natureza erótica; é considerado excitante
para o sexo masculino” (Weule, 2000: 36).


17 Ver o ótimo prefácio de G. Liesegang ao livro (2000).
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Ora, o novo código buscaria penalizar tais práticas18. Na “Secção IV - Das tatuagens e
outras práticas deformatórias” vemos os artigos 76: “pena de prisão e multa a quem
fizer - mesmo com consentimento - tatuagem no tronco” e 77: “O indígena que
perfurar os lábios também será punido”.19
A regulação, diz a autora, não apenas constitui os sujeitos, mas possibilidade de sua
localização ou posicionamento numa ordem determinada, interiorizada como a
própria produção do lugar do sujeito. É a própria norma, ou codificação que permite a
significação, quando o “simbólico”, em termos estruturalistas, é o que permitiria a
produção de um conjunto diferencial de oposições, que constituiriam o masculino e o
feminino, como a condição lógica de sua mesma possibilidade. Mas, o que assegura
Butler, é que o gênero, e sua materialização, exprimem a distância entre a norma
abstrata e suas incorporações determinadas. A norma, que é mais que o simbólico,
opera assim a transição entre o dispositivo genérico da significação, trans-histórico, e a
possibilidade da produção de diferenças socialmente perceptíveis na História. É
produtora e possibilitadora da circulação ou, devemos reconhecer, de uma economia.
Que administra recursos escassos, por meios políticos. Não se trata assim de meros
afastamentos diferenciais, mas da produção politica de uma distância.
Diria assim com o Butler, que o que perturba a distinção entre “legitimidade e
ilegitimidade são práticas sociais que não aparecem como coerentes no repertório de
legitimação disponível” (Butler, 2003). Ora, repertório que se fundava em
Moçambique, estava baseado na supressão dos particularismos étnicos e na
transferência de legitimidade e jurisdição dos usos e costumes para as novas práticas
instituintes do Estado.


A Mulher Nativa: Inscrição e Legibilidade


O processo da pesquisa para elaboração do código e a sua própria aprovação pelas
instâncias competentes revelam um mar de dificuldades e antagonismos, e nos



18Também referidas por Junod, com a grande preocupação de não chocar os leitores desavisados, de tal modo, que se refere a elas
em uma seção separada de seu “Life of a South-African Tribe”, intitulada “notas para médicos e etnógrafos” e publicadas
originalmente em latim, para evitar leitura por leigos. “Os pequenos lábios são designados pela palavra mileve (sing. Leve) que as
moças costumam esticar tanto que atingem cinco, dez e até quinze centímetros São medidos às vezes com uns pauzinhos o
comprimento deles, vangloriando-se elas entre as amigas e principalmente entre os maridos (noivos) com tais práticas as mocas
pretendem apenas agradar o futuro marido” (2009: 412).
19 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
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permitem observar as contradições no interior do corpo principal do Aparato Colonial
em Moçambique, o Governo Geral, a Direção de Negócios Indígenas e as dioceses de
Lourenço Marques e da Beira. O conjunto de agentes, representantes dessas
instituições, envolve-se em interessante disputa – sobre a qual ainda muito a ser
levantado – em torno da elaboração do código Civil e Penal dos indígenas de
Moçambique, como veremos.
O material encomendado a Cota foi submetido ao escrutino do Tribunal de Relação da
Colônia, que entende por bem ouvir o parecer dos Bispos de Lourenço Marques e da
Beira, sobre o teor e mérito da codificação proposta. “A bem da Nação” transita então
entre as instâncias o material etnológico, transmutada em código pelo
jurista/etnólogo. Em 26 de novembro de 1947, D. Sebastião Soares, Bispo da Beira e
Nampula, devolve a Direção dos Negócios Indígenas o copião do chamado “Estatuto do
Direito Privado dos Indígenas De Moçambique”, que havia sido enviado à aquela
repartição pelo “venerando” Tribunal da Relação de Lourenço Marques, a fim de que
fossem ouvidas as missões católicas.
Os pareceres são terríveis, e frontalmente contrários ao trabalho de Cota, como
veremos a abaixo. Fundamentalmente a legitimidade que a codificação parece
oferecer aos costumes nativos perturba a autoconfiança e a consciência dos bispos
que vêem feridos os pruridos civilizatórios de que se julgavam avatares.
Entendendo que o código deve favorecer a “evolução natural do indígena para
aproximar-se de nosso código civil”, Dom Sebastião ataca em primeiro lugar o que se
refere às instituições do casamento. Notadamente o relativismo de Cota, algo
surpreendente em um suposto evolucionista: “Na página 70 diz-se que a poligamia e o
lobolo podem ser mais verdadeiramente manifestações de uma civilização diferente da
nossa do que sintomas de uma mentalidade baixa peculiar aos agregados selvagens”.20
Segundo o bispo tal afirmação é insustentável e “injustificável pela história, sobretudo
pela nossa história”. Feriria mortalmente a pretensão colonial portuguesa imaginar-se
que costumes nativos pudessem equivaler às práticas civilizadas da metrópole.


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“A assentar em tais princípios códigos legislativos dos povos que ao dever de civilizar
será preferível desistirem dessa empresa e por motivos de justificação pública ou
confessar a nossa incapacidade de colonização ou então proclamar que os estados
mais selvagens de quaisquer tribos são fases inconfundíveis da civilização. Neste caso a
civilização perde o sentido que a história lhe consagra para ser apenas a manifestação
viva dos povos, seja qual for à situação intelectual, moral ou social em que se
encontrem. As tradições portuguesas ensinam que a civilização é coisa muito diferente.
É esta uma questão fundamental por se tratar de princípios”.21
Os princípios a que se refere o Bispo não podem estar à mercê das avaliações
relativizantes, e a verdade da história, e a filosofia da história que parece invocada,
não questiona a linearidade da evolução, muito menos o protagonismo dos povos
europeus, o que Cota, aos olhos do bispo pareceria fazer.
Segue o bispo criticando ferozmente a poligamia, porque o etnógrafo aí faz
comentários sobre o fato do polígamo escorraçar as suas esposas, buscando com essas
observações preservar o direito da co-esposa. Ora, se poligamia ela própria é
inaceitável, como considerar o direito baseado num fato ilícito?
“Outra enormidade! O pagamento do lobolo não supre os ritos nupciais que exprimem
ou manifestam o consentimento mútuo; não pode, portanto, validar um casamento
que era nulo por falta de consentimento. O que é mister é que o casamento cafreal seja
celebrado segundo os ritos tradicionais ou na falta destes a Autoridade imponha a
separação dos supostos cônjuges”.(ênfase no original datilografado).22
O casamento legítimo é o matrimonio católico – uno, indissolúvel e perfeito e não uma
mera “modalidade ao lado do cafreal, maometano”, etc., - nesse sentido o bispo pede
que se elimine qualquer referência legitimadora à poligamia, simplesmente proibindoa
por lei. Com que concordaria tanto Henri Junod, quanto Samora Machel, e mesmo as
feministas contemporâneas em Moçambique. Em meio a esse singular cortejo, Cota
seria, ironicamente, o campeão do relativismo.
Dom Joaquim Teodósio, Arcebispo de Lourenco Marques, havia anteriormente, em 31
de março de 1947, feito remeter à Direção de Negócios Indígenas o seu próprio
parecer, no qual é muito claro: “Não concordamos com a finalidade do projecto nem
com a doutrina exposta em muito dos seus artigos” uma vez que “dar foros de


21 Idem.
22 Idem.
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cidadania no domínio do direito a costumes bárbaros, parece-nos degradante para as
nossas tradições de povo civilizado” (ênfase no original datilografado).23
A oposição do cardeal é semelhante à de seu colega da Beira, a legislação não pode
incorporar ou mesmo legislar sobre o que deveria ser meramente extinto, como
manifestação da missão civilizatória portuguesa e da vontade de Deus.
“Pois é de estranhar que uma nação como a portuguesa que se constituiu desde há 8
séculos, a paladina da civilização cristã através do mundo – que recorda com título da
sua mais lídima glória ter levado a civilização cristã a América, à Ásia, a Oceania e a
África – que fixou na constituição como elementos fundamentais da educação moral as
virtudes da doutrina e moral cristãs tradicionais do Pais (Arto. 420.) venha agora
sancionar, codificando-os, os usos e costumes bárbaros da raça negra de Moçambique,
como sejam a magia, as superstições pagãs, a poligamia, o lobolo, a iniciação ao
casamento, etc”. 24
Segundo o Cardeal, o decreto no. 35461 de 22 de janeiro de 1946, que regulamenta o
casamento “canônico” entre os indígenas católicos, é claramente oposto ao projeto e
deveria a ser a referência da legislação.
Nese caso também, e de modo retumbante, os argumentos da Santa Igreja se
assemelham quase totalmente ao que posteriormente foram os argumentos de
Samora Machel e da FRELIMO. A família é a célula mater da sociedade, a base
elementar sobre a qual se elevam e constroem os valores fundamentais da sociedade
e da civilização. Cristianizando-se a família, diria o cardeal, teremos uma sociedade
cristã. Ora, o casamento é a base da família, e por isso a “constituição familiar é tanto
mais sólida quanto maiores garantias de unidade e indissolubilidade o casamento
oferecer”. 25
Nas páginas da Revista “Justiça Popular” a FRELIMO aproxima-se do Bispo, na
campanha pelo casamento civil, universal, que seria fundamental, dentre outras
coisas, pela promoção da família (patriarcal, monogâmica, nuclear) como célula base
da sociedade.
“Para construir uma sociedade nova temos que criar uma nova mentalidade no homem
e na mulher, e este processo inicia-se no seio da própria família, célula-base de nossa


23 Idem.
24 Idem.
25 Idem.
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sociedade. Embora o homem tenha o papel dominante, mas mulher, a esposa, a mãe
assumem na família a grande responsabilidade de assegurar a estabilidade o lar e
educar as novas gerações para o futuro” (Machel, 1984).
Desse ponto de vista sustenta-se a importância do registro civil como fonte de
informações e a necessidade de reconhecer-se, que a despeito da importância da
família ampliada, o princípio a ser respeitado seria “o da voluntariedade por parte dos
próprios cônjuges”, o que vinte anos depois seria contemplado na Nova Lei de Família
(Arnfred, 2011; Arthur, 2003; Osório e Arthur, 2002). A família é, assim, entendida
pela FRELIMO como a célula base de toda a sociedade, formada por meio do
casamento, “união de um homem e de uma mulher”, no que também concorda com o
Cardeal Teodósio.
Recordo-me como em 2011, o Ano Samora Machel em Moçambique, eu ouvia o
camarada Presidente no rádio de um Táxi, atravessando Maputo no empoeirado frio
seco de agosto. No discurso, Samora atacava ferozmente os costumes corruptos
associados ao colonialismo. Proferido no tempo da luta de libertação nacional, o
discurso incide contra os soldados portugueses que chegavam ao porto trazendo,
segundo Machel, os vícios da sociedade corrompida, a prostituição, as bebedeiras, as
drogas, a corrupção das mulheres moçambicanas, servas do prazer momentâneo dos
colonos.
O modo como a prostituição, e as prostitutas, parecia encarnar toda a degeneração do
regime colonial, ocupa grande espaço na retórica de Machel, e da FRELIMO, com o
aparece nos “Estatutos e Programa da Frente de Libertação de Moçambique”26: “A
Mulher Moçambicana foi sempre considerada um simples instrumentos de prazer
pelos colonialistas. As nossas mães, irmãs, filhas, são exploradas, oprimidas, violadas
impunimente pelos colonos. A dignidade da Mulher Moçambicana é espezinhada, o
papel que tradicionalmente lhe pertencia no lar Moçambicano nãos mais pôde ser
preenchido” (citado em Muiane, 2006: 114).
Ponto supurado da articulação entre raça e gênero, a prostituição colonial ofendia
vigorosamente a sensibilidade revolucionária, comprometida com emancipação da


26 Aprovado pelo II Congresso da FRELIMO, realizado na província de Niassa entre 20- e 25 de julho de 1968. (Muiane, 2006).
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mulher, e claramente entremeada por uma sensibilidade cristã, que via na família e na
“honestidade” das mulheres valor essencial.
Em suma, vaticina o cardeal, Dr. Jose Lourenco Cota não sabe do que fala, e coloca em
risco todo um projeto civilizatório: “Vê-se aqui que o autor não tem um conceito claro
da civilização, admitindo como verdadeiras, civilizações até contraditórias.” Pode
haver, segue o prelado, e há na realidade civilizações mais ou menos perfeitas. “Mas
há que admitir um critério absoluto de civilização; e este só pode basear-se na lei
natural gravada pelo criador no coração dos homens, e aperfeiçoada pela moral cristã,
do evangelho de Cristo”. 27 A lei natural de inspiração cristã, melhor desenvolvida na
Europa que em África, deve ser cultivada e aprimorada como um dever. Desse ponto
vista o código é inaceitável porque contraria o “fardo do homem branco” em África28.


Casamento, Divórcio, Poligamia


Como já dissemos, as questões de parentesco e casamentos ocupam grande parte dos
pareceres dos prelados coloniais. O Arcebispo refere-se ao que Cota chama de cancro
burocrático, implicado na dificuldade de reconhecimento do casamento “cafreal” e as
complicações que adviriam da estipulação do pagamento do lobolo.
“Nota sobre o lobolo. O que o autor diz nesta Nota sobre a natureza do lobolo, e se
atendermos aos inúmeros e complicados litígios a que ele dá lugar na vida das famílias
indígenas (págs. 126), parece-nos que seria de aconselhar a abolição pura e simples de
semelhante uso cafreal”. 29
Ora, para o bispo estará na supressão pura e simples do lobolo, em todas as suas
formas, a solução de tal cancro. Tumor maior representaria a aprovação do divórcio,
usual em diversas tradições culturais locais, notadamente no norte, mas perseguido
como invenção do diabo pela igreja católica. Regulamenta-la, diz o Cardeal, equivaleria
a legitimar o “amor livre!”.
José Cota, entretanto, reage com vigor aos pareceres, defendendo o seu trabalho, em
10 de julho de 1947, no documento intitulado “Considerações sobre alguns pontos dos
pareceres de sua eminência o cardeal arcebispo de Lourenço Marques e sua Excelência


27 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
28 O poema de R. Kipling diz: “Toma o fardo do homem branco/Envia o melhor de tua prole/Impõe o exílio a teus filhos/Para servir
a necessidade do cativo/Para assistir, em pesada labuta,/A povos alvoroçados e incultos - /Indolentes raças que acabam de
conquistar,/Mescla de demônio e criança”(1894).
29 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
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Reverendíssima o Bispo da Beira” 30, remetido ao Capitão Furtado Montanha, da
Direção de Negócios Indígenas. Cheio de falsa reverência, Cota refere-se com sutil
ironia ao parecer: “Não vimos discutir alterações propostas por sua eminência o
cardeal, ou por sua excelência reverendíssima o Bispo da Beira, ao projeto em questão,
ditadas pelo seu modo especial de ver o problema da reforma social das populações
nativas desta Colônia, nem tão pouco é nosso desígnio estabelecer aqui, fora do lugar e
das boas regras, uma polêmica acerca de quaisquer pontos de vista pessoais com que
não estejamos, porventura, em acordo, por motivos de ordem sociológica ou
psicológica”. 31,
E logo busca desqualificar de uma só tacada o principal do argumento dos bispos. O
Estatuto não é um código: “não há normas do direito imposto coativamente” e “não se
pode consequentemente esperar da adoção deste regime jurídico a estagnação do
direito tribal”. Cota situa o seu trabalho como um documento de caráter “mais
informativo que imperativo”. Desse modo não se justificam as preocupações dos
religiosos, de que o Estatuto estaria legitimando os costumes bárbaros dos indígenas,
e impendido o trabalho de reforma social ou civilização, que seria o próprio
fundamento da presença portuguesa em Moçambique. O estatuto teria o caráter útil
de um material de consulta para administradores coloniais e a preocupação de Sua
Eminência seria vã. Entretanto, parece claro, que mesmo para o próprio Cota as coisas
não seria tão inocentes assim, e ele compreendia muito bem que descrever com
relativa isenção um conjunto de normas coerentes e sistemáticas de outros povos, em
equivaleria em grande medida a legitimá-las. A própria produção de conhecimento
sobre a sociedade colonial, no contexto daquele feroz assimilacionismo, implicaria
uma transformação da decidida vontade de incorporar-se a regulação sobre a mulher e
o casamento aos marcos da teologia cristã. O que, como vemos, acontecia. O Estado, e
sua racionalidade, buscavam regular, reduzir, apropriar-se do corpo da mulher e de
sua alma/carne, de outro ponto de vista, mais prático que ideológico. Buscando
esquivar-se de problema com a igreja, todavia, Cota diz: “No Paragrafo único deste
artigo, indica-se expressamente o casamento canônico como a condição para se aplicar
o direito civil português às questões sobre direito de família e sucessão”.


30 Idem.
31 Idem.
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A interpretação que caracteriza os crimes da família, ou melhor, os converte,
criminalizados, de costumes tradicionais a práticas proscritas, é a própria operação da
máquina regulatória colonial, buscando transferir a jurisdição sobre o casamento, e
corpo da mulher, seu destino e sua carne, para, sob o peso das engrenagens do
Estado, como buscou fazer posteriormente a FRELIMO. Ora, a Igreja buscava defender
firmemente a sua primazia sobre a administração dos destinos da carne da mulher.
Além do Lobolo, da poligamia e dos ritos de iniciação, a famigerada troca de esposas
ganhou o seu quinhão de reprovação. Cota cita, buscando apaziguar os bispos: “Em
coordenação com estes preceitos de morigeração da família e sublimação do direito
tribal estabeleceram-se no código penal dos indígenas as sanções necessárias para o
Ontamuene (troca de esposas) e para o casamento de inúbeis.” E sugere penalidade no
Art. 99. “Os indígenas casados segundo os ritos de sua tribo que emprestarem suas
mulheres a outro homem ou as trocarem por outras mulheres casadas com os
respectivos maridos, será punido com a pena de prisão correcional de até dois
anos...”.32
O nosso jurista ataca mais uma vez de relativista, dando uma no prego e outra na
ferradura. Invoca a carta constitucional portuguesa de 1933 que teria a
“contemporização” como um seu princípio. Assim, “mesmo Dr. Marcelo Caetano sábio
professor de direito não ousou dar golpe mortal as tradições - O Estado português se
propõe civilizar, mas também proteger a ‘própria alma dos povos nativos da
colônia’“.33
E, finalmente contra o argumento eclesiástico a cerca da poligamia, Cota desenvolve a
mais surpreendente argumentação, e com muita propriedade lembra aos envolvidos
que a poligamia não é privativa dos povos “selvagens”: “Se nossos olhos se voltarem
para própria Europa civilizada poderão ver o doloroso espetáculo da poligamia
ilegal...” E cita um fascinante caso histórico: ”Em 1848 foi apresentado a Câmara dos
Deputados da França um projeto de estabelecimento da poligamia naquele país. O
deputado proponente perguntava à Assembleia: ‘Porquoi imnpose une seule femme a


32 Idem.
33 Marcelo Caetano, eminente jurista, foi reitor da Universidade de Lisboa e Ministro das Colônias entre 1944 e 1947, e a partir de
1968, com o afastamento de Salazar, tornou-se em 1968 presidente do Conselho dos Ministros, onde permaneceu até Revolução
dos Cravos em 1971, que pôs fim ao regime salazarista.
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l’home, puisq’l peut procrér, chaque anné plusieurs enfants?’” Como era de se esperar
tal proposta foi rejeitada por maioria. 34 Tal manifestação diz Cota, implicaria em uma
submersão atávica do homem em direção as seus traços primitivos. Em alguma medida
demonstrando sua fidelidade ao evolucionismo, Cota acredita que a proposição
francesa testemunharia o “desejo de regressão à ética do Homem primitivo das hordas
amorais”.
Mas ora, se a poligamia grassava na Europa a tal ponto de propor-se a sua legalização
na França, pátria da civilização “como podemos nós acusar os negros da nossa colônia
de bárbaros e imoralíssimos por manterem, no seio sua da vida social rudimentar, a
poligamia, ao lado de outros costumes primitivos que são tudo o que resume e define a
história das suas instituições e a sua psicologia?”. E conclui hiper-relativista: “Se a
civilização condescende com a hipocrisia e o amoralismo de homens casados (pois não
os reprime como delito) a civilização deve, por maioria da razão, condescender,
transitoriamente com a poligamia dos nativos”. 35
Já foi sinalizado como é possível perceber continuidades entre o núcleo de
representações presentes no debate resumido acima, e as posições sustentadas pelas
FRELIMO, particularmente por Samora Machel, em diversas ocasiões e com muita
verve. A despeito da manifestação revolucionária em favor da emancipação feminina,
para Samora tal processo não significaria a constituição de uma “igualdade mecânica”
entre os gêneros, muito menos a aproximação dos padrões de comportamento da
mulher “emancipada” ocidental: “Que bebe, fuma, usa calças e minissaias, que se
dedica a promiscuidade sexual e a não ter filhos” (Machel, 1974). Como Harris,
Casimiro e outros autores apontam, a formação de parte da elite frelimista em missões
cristãs (católicas e protestantes) marcou a natureza ideológica e os moralismos
(sexismos) do discurso frelimista(Casimiro, 2005; Harris, 2001; Manghezi, 1999).
Veena Das discute em “The Signature of the Sate” como a autoridade do Estado é
materializada no dia-a-dia. Como a lei não é necessariamente manifestação da
autoridade do Estado, mas signo de um poder distante que se imiscui nas práticas do
dia-a-dia de diferentes e as vezes contraditórios modos. Encararíamos assim o modo


34 Processo 020811 direção dos serviços dos negócios indígenas S1/caixa 1640– AHM – UEM.
35 Idem.
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como o Estado tenta impor modos de governança através de “tecnologias da escrita”,
ou da inscrição. Entretanto, aponta Das, o Estado também se impõe pelas
possibilidades de sua imitação, mímica oblíqua de seu desempenho do poder. A
relação entre o Estado, sua literatura, digamos assim, e as performances orientadas
pelo Estado produzem uma distância, o “paradoxo da ilegibilidade”, como o descreve a
autora. Assim, o que o estado pretende regular é extraído como uma “mágica”,
empreendida por populações marginais, que regulam suas próprias posições por meio
da mimese de práticas estatais (Das, 2004).
A assinatura do Estado com uma força ilocucionária também incorpora uma força
“mágica” presença espectral, que opera como manifestação esvaziada repetida como
mimese em suas margens, ou a “fenomenalidade paradoxal” de que nos fala Derrida
(1994). Das argumenta que o Estado também se constrói em suas margens e nesses
movimentos de tradução incompleta. “Through an exchange between the real and the
imaginary as in notions of panic, and rumor, and credulity, the domain of the civil is
instituted and controlled” (Das, 2004: 251). Novamente, o romance já citado de
Chiziane oferece uma imagem literária do pânico às margens do Estado:
“Os chefes durante o dia apregoam a viva voz a ordem e o progresso, banindo os
grupelhos supersticiosos e obscurantistas para não perder o emprego, mas quando
chega à noite esquecem a doutrina do desenvolvimento sem Deus, e entregam-se com
todo o fervor às preces do criador de todos os seres” (Chiziane, 2010:60).
Neste caso em particular, como talvez tenha ficado claro, a produção do Estado em
suas margens por meio dos poderes paradoxais da (i)legibilidade é também a
produção de suas próprias margens, defendidas e diferidas no corpo dos nativos, e
ainda mais especificamente, no corpo das nativas. Nesse sentido, podemos considerar
como Spivak, a necessidade do discurso universalizante da dominação colonial
manifestar-se como a articulação de representações, e do poder da letra da lei em sua
dimensão ilocucionária, como fundo último à submissão das populações nativas, por
meio de sua conversão em indígenas, como força de trabalho e mão-de-obra barata36
(Spivak, 2010; Zamparoni, 2007; Macagno, 2001).


36 Já sabemos como as relações de gênero nativas entram no calculo da manutenção/substituição de mão de obra, transferindo
para as atividades não incorporadas a lógicas da mercadoria, o trabalho agrícola, predominantemente feminino, a
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Em “Crítica da La Razón Poscolonial” Spivak discute a relação entre a produção
discursiva europeia e a axiomática do imperialismo (colonial). Ora, esse demanda,
segundo seu argumento, produz em sua própria engenharia interna o “informante
nativo”, figura ao mesmo tempo produzida e negada, ou repudiada (foreclosed). Como
ela, enfatiza o informante nativo possui um nome de homem “que porta consigo el
afecto que inaugura el ser humano” (Spivak, 2010: 17), mas seria mais produtivo
considera-lo como assumindo uma inflexão de gênero, que tem uma marca de origem
geopolítica. Suplementando a argumentação freudiana, Spivak argumenta que o malestar
civilizacional que o autor alemão descreve escora um “rechazo”, que serviu de
defesa a missão civilizatória. O informante nativo “sin biografia” é nesse sentido uma
peça chave na retórica “gendered” do colonialismo37.
No ambiente atual de financeirização/globalização do mundo, no qual as agências
humanitárias e as instituições econômicas globais coincidem sobre a produção da
mulher, universalmente considerada como objeto de políticas de desenvolvimento,
sob a rubrica do Women Development Programs, o que Arnfred e Casimiro já
apontaram e discutiram muito bem para o caso moçambicano (Arnfred, 2011;
Casimiro e Andrade, 1992). O informante nativo tornou-se a mulher do terceiro
mundo, como a figura repudiada, “foreclosed” necessária à sustentação da axiomática
imperialista: “La perspectiva repudiada (foreclosed) del informante nativo está situada
en la subalternidad global de la mujer” (Spivak, 21010: 97).
É na produção do registro da autoridade colonial com uma diferença política, que
localizamos a introdução de categorias de gêneros no cálculo político-discursivo de
produção do Estado moçambicano. Como parece evidente, e algo desconcertante, na
forte continuidade, tanto formal quanto estratégica, de produção da inscrição legível
do corpo da mulher no corpo da lei, como código (Haraway, 1991) 38 , o que
efetivamente parece produzir a sua “alma” como uma redução assujeitada, e como a


responsabilidade para com a reprodução biológica da força de trabalho em Moçambique, como discutido em First (1998). Assim a
produção do Estado em suas margens passa pelo destino das mulheres e de sua carne.
37 “Aunque la historia sea un gran relato, lo que sostengo es que la posición de sujeto del informante nativo, crucial, y sin embargo
repudiada (foreclosed), esta también inscrita históricamente, por lo tanto, geopolíticamente” (Spivak, 2010: 334).
38 Determinados corpos e práticas, atados a maquinações discursivas e políticas de grande escala, repetem e reproduzem formas
coloniais de opressão sob viés sexista e racista. Corpos de travestis nas ruas, ou de negros “hiper-sexualizados”, em ambientes
puritanos, significariam uma ameaça aos poderes do código (Haraway, 1991), e da normalização disciplinar, que faz analogia da
relação corpo e política.
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própria reposição de determinada unidade empírica, sobre a qual se busca exercer
controle ao impingir a letra da lei, como um modalidade de estatização espectral,
assujeitando a mulher como figura necessária e repudiada.


“Zona Quente” Pós-Colonial


Em agosto de 2011, em minha última viagem a Maputo, estive sozinho pela primeira
vez na “Zona Quente”. A “Hot Zone” da prostituição em Maputo, instalada em torno
de dois ou três quarteirões na Baixa, por onde circula por toda a noite a multidão
característica de ambientes tais quais esses: as moças, e obviamente seus clientes,
taxistas, turistas, e indecifráveis figuras noturnas. Já havia lá estado com amigos “uns
copos”. Ouvindo Rock and Roll no Gipsy, bebendo e conversando. Nessa noite,
entretanto, fui sozinho, não, obviamente, buscando os serviços das raparigas, mas
curioso em interagir com o território saturado da memória das políticas sexuais, e de
seus embates no trânsito (pós)colonial. Na escada de acesso ao banheiro um enorme
gordo me abre os braços, como um urso familiar: “Há quanto tempo não vinhas cá, dáme
lá um abraço”. Eu não sabia de quem se tratava e suspeitei que ali se encenava um
ritual de reconhecimento ou inspeção, e uma ponta de apreensão picou meu coração.
Todos viam que era estrangeiro e tive um pouco de trabalho em recusar, com polidez,
a oferta insistente das moças.
Lá, na Zona Quente, recordava com intensidade alcoolizada como à questão da
prostituição era um ponto crítico na plataforma ideológica da FRELIMO, que via na
ocupação colonial, também um aviltamento à honra das mulheres moçambicanas e,
por conseguinte, de seus maridos, irmãos e esposos. A prostituição e o uso abusivo do
corpo da mulher. Humilhante metáfora carnal do próprio colonialismo.
Fátima Ribeiro, em belo opúsculo, discute o tema da prostituição na obra do poeta
nacional moçambicano, José Craveirinha. Como ela apontou com grande perspicácia, a
prostituição operava no ambiente pós-colonial como uma perversa zona de contato
entre o mundo branco e o mundo negro.
“A transposição da barreira entre um mundo e outro realizava-se nos dois sentidos
havendo uma interpenetração nociva por trazer consigo a humilhação, a degradação
física e moral da mulher, a alienação cultural” (Ribeiro, 1995: 17).


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Neste mesmo livrinho encantador, Ribeiro nos traz uma foto de Ricardo Rangel, de
1973, que mostra a Rua Araujo, coração da “Hot Zone” colonial. Nesta, vemos homens
brancos que circulam entre as raparigas negras. Representação instantânea da
contradição sexual na zona quente do contato colonial. Fanon apontou para como a
fronteira no mundo colonial está estabelecida pela delegacia de polícia (1979), nesse
caso deveríamos acrescentar que também o bordel pode estabelecer-se como
fronteira colonial39.
Rua Araujo, Lourenço Marques, 1973, fotografia de Ricardo Rangel em Ribeiro, 1995.
O poeta Craveirinha teria antecipado no poema “Doce Albertina das Cervejarias”
(1961) a fúria revolucionária que, mobilizada pela ofensa de gênero colonial, se
alevantaria no ano seguinte na Luta de Libertação Nacional, do Rovuma até o Maputo:
“Mas tu!
Tu minha doce Albertina assídua nos snack-bares.
Neste mundo os encervejados filhos de tuas tarefas
com um milhão de pais e padrastos incógnitos
mas cedo ou mais tarde nos todos juntos
havemos de preencher as certidões de nascimento
com os verdadeiros apelidos escritos na correcta
caligrafia dos irrefutáveis argumentos
Moçambicanos desengatilhados no norte
ao sul e do sul ao norte


39 O trecho em “Os Condenados da Terra” diz: “O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é
indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (...) Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do
colono e do regime colonial de opressão é o gendarme e o soldado. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de
pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa
consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência a casa e ao cérebro do colonizado” (1979).
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fumegando em prol das Albertinas
desde Tete a Negomano
e de Quiterajo a Angoche
emboscados depois via Zumbo
Maxixe...zzzzz!!!Gaza e Magude
marchando irresistíveis até Xinavane
Manhiça e Marracuene
Até chegarmos em triunfo
A Goba e Catuane”!
(José Craveirinha, 1960, citado em Ribeiro, 1995).
No mesmo dia em que estive no Gipsy, li na internet, meio por acaso, o interessante
texto “Na Rota dos Pecados Noctívagos” (Verdade, 2011). O autor se refere a um
trabalho do jovem sociólogo Shareef Malundah no campo da prevenção ao HIV/AIDS
para deplorar a presença de jovens na “Zona Quente, as bebedeiras” e a prostituição.
“A grande ‘revolução’ é este século XXI ter nascido embutido com um comportamento
sexual de total ruptura em relação à família, à religião ou à sociedade. Sexo existe para
dar prazer e para a procriação. Só que a juventude de hoje esquece facilmente que
quando usado de maneira irresponsável, corre o perigo de contrariar o inimigo número
1 da humanidade: o SIDA!!!” (Verdade, 2011)
O tom conservador, o moralismo, o sexismo e a culpabilização da mulher, o retorno a
imaginados valores tradicionais da família (não a família estendida “nativa”, mas a
família nuclear cristã, ocidental e burguesa), tudo isso volta, depois de tantos anos, e
por outros meios, como elementos duradouros, presentes na cultura moçambicana.
Tudo então naquela noite me assediava a imaginação: Weule, Cota, Samora, Albertina.
No frio ar avermelhado da Zona Quente Pós-Colonial.
Em Achille Mbembe, o conceito de postcolony está vinculado à ideia de uma “age”,
com diversas temporalidades concorrentes, e baseia-se em determinados
pressupostos. Notadamente na ideia de “commandement”, desenvolvida como uma
política de três faces, baseada na inflação ou fraqueza da pressuposição de direitos, na
violência e, por fim, na identificação entre dominação e civilização. Desse ponto de
vista, a produção do Estado, ou a “estatização” da sociedade, não advém da dissolução
de antigos laços sociais, mas da superposição de velhas hierarquias e redes: “the
general pratice of power has followed directly from the colonial political culture and
has perpetuated the most despotic aspects of ancestral traditions, themselves
reinvented for occasion” (Mbembe, 2001: 42). Outras dimensões da postcolony


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referem à ética da vulgaridade e a conversão fálica ao cristianismo. Numa versão
fantasmagorizada do Estado e de sua erótica da alteridade, na qual poder é exercido
como a assombração de um fantasma originário: “The phantasm of power and the
power of the phantasm” (Mbembe, 2001: 231). Desse modo, a dominação consiste,
para dominantes e dominados, no compartilhamento dos mesmos fantasmas. A
mesma obsessão pós-colonial fantasmática em África, possuída sob a forma
avassaladora de uma economia da sexualidade:
“The form of domination imposed during both the slave trade ns colonialism in Africa
could be called phallic. During the colonial era and its aftermath, phallic domination
has been all the more strategic in power relationships, not only because it’s based on a
mobilization of the subjective foundations on masculinity and femininity but also
because it has direct, close connections with the general economy of sexuality”
(Mbembe, 2001: 13).
O que observamos é que o fundamento de tal economia política enraíza-se, na
passagem colonial pela incorporação do destino da mulher, e de sua carne, aos
destinos da nação. Em diferentes fases históricas que construíram a trajetória do
estado-nação moçambicano, a mulher esteve no centro das considerações políticas, e
a sua produção/inscrição como nativa, significa a mesma produção do Estado em suas
margens porosas e maleáveis.





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